sábado, 27 de maio de 2017

Um Deserto Estressante

Muitas religiões ao longo da história da humanidade apresentaram à seus adeptos ícones do movimento, figuras singulares que tomaram o lugar de liderança, influência e sem dúvida foram formadores de opinião bem como do movimento em si. Algumas dessas religiões (quase todas para ser sincero), possuem algum tipo de “ritual de passagem”, algo que inicia a caminhada do adepto, que segundo as crenças da mesma, o líder, o primogênito do seguimento já havia passado também.

Em realidade, desde os mitos gregos até figuras modernas como Martin Luther King Jr. tiveram seus “rituais de passagem”. O antropólogo Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces, rastreou o que ele chamou de A Jornada do Herói, em outras palavras, após anos de pesquisa, foi possível demonstrar em que crisol é formado um herói e quais os ingredientes são necessários para o surgimento da icônica figura, quer seja religiosa ou política.

Tais ingredientes, ou princípios, foram usados para criar personagens como Batman e Homem Aranha por exemplo, personagens que perdem a figura paterna e induzidos pelo trauma decidem mudar o mundo. Encaram um “ritual de passagem” (a mutação genética pela mordida de uma aranha), encontram um mentor (o mordo Alfred) e se lançam à jornada.

Pois bem, na vida real também não é diferente, haja vista Steve Jobs que apesar de sua tempestuosa personalidade, é por muitos considerado um verdadeiro herói, e de fato, temos que concordar que graças a ele muita coisa no mundo mudou. Para quem leu sua biografia ou pesquisou um pouco sua história com um olhar mais apurado, percebeu elementos “heróicos" que o impulsionaram para uma verdadeira odisséia no mundo da computação pessoal.

Figuras como o já citado Luther King, bem como Mandela, Gandhi, Maomé e tantos outros possuem os mesmos elementos em sua trajetória, e não seria diferente na cultura judaica-cristã que possui como figuras centrais Moisés e o messias chamado Jesus. Embora para a grande maioria dos adeptos, Jesus Cristo seja o centro de sua fé e possua em sua história elementos regados com aspectos sobrenaturais, ambos possuem elementos perfeitamente rastreáveis pelas ciências humanas em sua jornada heróica tal como os heróis já mencionados.

Talvez nesse momento o leitor deva estar se perguntando: então Moisés, Cristo, Mandela, Gandhi, Batman e o Homem Aranha estão no mesmo patamar? São apenas heróis construídos por aspectos semelhantes e eventos rastreáveis? Pois bem, é aqui que gostaríamos de chegar!

Vamos deixar de lado aspectos sobrenaturais e não nos deteremos à “forças malignas”, milagres e outros elementos cuja investigação cientifica não seja possível. Seguiremos adiante analisando aspectos da vida de Cristo que podem ser interpretados, analisados e criticados à luz das ciências humanas. Para ser mais exato, neste momento nos deteremos a alguns aspectos do “ritual de passagem” que Cristo enfrentou no inicio de sua jornada, o deserto.

Para tal analise, usaremos como fonte histórica um autor não judeu, mas grego, de alta cultura e que embora não tenha conhecido Jesus pessoalmente, fez de sua capacidade investigativa, que possuía como médico, o meio para buscar “testemunhas oculares”, o que é um requisito importantíssimo para “acurada investigação de tudo desde sua origem”, dando-nos por escrito uma biografia que conhecemos hoje como O Evangelho Segundo Lucas, que para ser mais exato, poderia ser segundo o Dr. Lucas.

Pois bem, com base no relato do autor, que era herdeiro dos princípios de Hipócrates e que possuía um raciocino lógico, caso contrário não lhe seria possível uma “acurada investigação”, Cristo passou 40 dias no deserto sem comer, e para espanto do médico, o relato menciona que Jesus se submeteu a essa provação espontaneamente!

O biógrafo, sabia dos limites do corpo humano, entendia como médico que com apenas três dias sem água há uma profunda desidratação e sem comer por 40 dias, além da drástica perda de peso, o nível de estresse é altamente elevado e a perda da sobriedade seria certa graças a severa desnutrição. Delírios e perda da racionalidade são coisas comuns em um estágio como esse. Jesus deve ter emagrecido quase até a morte.

Cabe ressaltar que em situações de extrema necessidade, sobretudo alimentar, dificilmente há solidariedade, tolerância, nem capacidade mental de se desenvolver um raciocínio complexo. Os instintos de sobrevivência afloram, pensar antes de agir torna-se praticamente impossível. No contexto da história do judaísmo por exemplo, podemos citar os campos de concentração nazistas, onde sob severas provações, muitos judeus torturados pela fome tinham reações nada altruístas, escondiam alimentos, omitiam, dissimulavam e traíam até mesmo seus familiares por um pedaço de pão apenas, embora fossem boas pessoas fora dessa dramática e estressante situação.

Voltando a nossa analise, onde encontramos o Herói da vez com o corpo esmagado pela fome, temos que concordar que humanamente falando, é loucura alguém decidir passar por uma prova dessas por livre e expontânea vontade, e talvez o leitor pense: isso não só é loucura como é irreal, mitológico, fantasioso! Mas cabe lembrar e nos questionar do por que então, um médico decidiu superar os preconceitos étnicos entre gregos e judeus, lançar mão de sua profissão e dedicar talvez anos de sua vida para investigar pessoalmente a história do carpinteiro de Nazaré. Mais do que muitos de nós que somos leigos quanto aos limites do corpo humano, Lucas era especialista no assunto, sabia exatamente o que estava escrevendo, além de já ter afirmado que sua narrativa seria criteriosa.

O autor continua narrando e como se não bastasse, o texto menciona que ao final dos 40 dias Cristo teve fome, o que nos leva ao questionamento: e nos dias anteriores? Não estava faminto? É óbvio que sim, mas talvez o autor tenha feito menção apenas no final da jornada, indicando sutilmente que o processo de interiorização de Cristo foi tão profundo que suprimiu o desejo, a necessidade de alimento.

O que a ciência sabe sobre isso, é que em casos de terremotos ou tragédias como o ataque as Torres Gemias, em que pessoas ficam presas por dias em meio aos escombros, de alguma forma, talvez movidas pela esperança de serem encontradas e o desejo de viver, o cérebro trabalha com tamanha força mental que as preserva fisicamente vivas a despeito das necessidades do momento. Como isso ocorre? Ainda é um mistério para a medicina.

Agora o que é mais estarrecedor, é que a biografia descreve Cristo sendo provocado intelectualmente no extremo estado que se encontrava, justamente onde não havia espaço para o intelecto. A despeito de quem o provocou ou se Jesus tinha ou não poderes para suprimir as leis da física e mudar a matéria, transformando pedras em pães, Lucas relata que não só o Herói foi desafiado intelectualmente como respondeu em nível superior, só isso é suficiente para deixar qualquer amante das ciências humanas atônito.

Tomemos nota da resposta: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.” Há vários aspectos curiosos nessa citação, mas vamos nos deter em primeiro lugar ao fato de que é um pensamento, uma resposta que segue um raciocínio lógico, em segundo, Cristo usou conscientemente uma critica comparativa: um alimento físico versus um alimento metafísico. E como se não bastasse, extrapolando os limites dos limites, sua resposta esboçava comparativamente a sobrevivência humana temporal proporcionada pela pão de trigo, com a sobrevivência atemporal, proporcionada diretamente pelo que Jesus considerava ser o Autor da sua existência. É como se Cristo preferisse morrer fisicamente mesmo depois de tudo o que passou durante 40 dias, do que se desconectar do seu Deus!

Embora seja impossível para a ciência investigar tais aspectos, é assombroso percebermos que mesmo enquanto cada célula do corpo de Jesus estavam a beira de um colapso, ele escandalizava a medicina poetizando o maior sonho dos mortais: a imortalidade. Sem contar que dependendo dos níveis de estresse o instinto prevalece sobre o raciocínio (como já relatado), levando o ser humano a cometer atos impensáveis. Nosso Herói no entanto, foi levado ao limite dos limites e não sucumbiu aos instintos, preservou sua consciência crítica.

Sejamos francos, a maioria dos seres humanos não suportaria minimamente tamanha presão ao longo da vida. Lucas escreve como um louco, mas era médico e lúcido investigador e por isso talvez tenha sido impossível para ele não ter sido cativado pela avassaladora lucidez demonstrada por Cristo em uma situação tão caótica.

Logo, o que podemos esperar a mais da personalidade bem como das ações e reações dessa icônica figura? Quais aspectos da história de Jesus mais cativaram o refinado médico grego? 

Continua…

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